terça-feira, 22 de abril de 2014

O QUE É A NETMUNDIAL?

'Caminhamos para cada vez menos privacidade na internet', diz professor da UnB

Motivada por espionagem dos EUA, NetMundial começa nesta terça em São Paulo com intenção de 'democratizar' a rede. Mas, para especialista, terá alcance limitado: 'É mais fácil dizer do que fazer'.

                                                EDUARDO AIGNER/PARTICIPA.BR
Sociedade poderá participar livremente
da Arena NetMundial, no Centro Cultural São Paulo

São Paulo – Começa amanhã (23) e vai até quinta-feira (24) em São Paulo a primeira Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança na Internet, conhecida apenas como NetMundial. Motivada pelo discurso de Dilma Rousseff na 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas, no ano passado, o encontro que pretende democratizar o controle da rede também será aberto pela presidenta.

A seu lado estarão Tim Berners Lee, criador da web, e Fadi Chehadé, chefe da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), órgão submetido ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos, e responsável por administrar a internet. Com participantes de peso, a conferência pretende avançar na definição de novos princípios para governança na rede e estabelecer um roteiro que possibilite um aprimoramento constante dessa governança.

A proposta defendida por Brasília – e que ganhou moral com a aprovação do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados – é retirar o controle da rede das mãos de Washington e transferi-lo para uma espécie de Comitê Gestor da Internet internacional, que, aos moldes do CGI brasileiro, tenha a participação de governos, empresários, sociedade civil, acadêmicos e técnicos de todo o mundo. O Icann já se mostrou simpático à ideia. Mais de 80 países estarão representados na conferência.

A NetMundial provavelmente não seria uma realidade se o ex-técnico da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, Edward Snowden, não tivesse denunciado os mecanismos utilizados para vigiar e interceptar as comunicações globais. E Dilma Rousseff não teria assumido a liderança no processo se essas denúncias não tivessem mostrado que os brasileiros, a Petrobras e ela própria têm sido alvos prioritários da bisbilhotagem norte-americana.

“Mas não acredito que as decisões tomadas nessa conferência possam frear nem a espionagem, nem o vigilantismo global informatizados”, pondera Pedro Rezende, professor de Ciências da Computação da Universidade de Brasília (UnB). “No entanto, podem tornar essas operações mais sensíveis, aumentando no imaginário coletivo a percepção de como essa sanha pelo poder pode ser destrutiva para as formas de organização social que impõem limites à tirania e à ganância.”

Especialista em segurança na internet, Rezende conversou com a RBA sobre os possíveis desdobramentos da NetMundial e sua importância para o futuro da internet. “Os resultados possíveis vão na direção de mais democracia no Icann, mais autonomia para os redistribuidores e mais organização entre entidades civis para demandar serem ouvidas em decisões sobre a internet”, antecipa. “Mas isso é mais fácil de dizer do que fazer acontecer no ciberespaço.”

Quem manda na internet? Por quê?

Na prática, a internet é uma rede heterogênea de redes de computadores onde cada um manda na sua rede, tendo cada uma, ao integrar-se, concordado tacitamente em contribuir para que o tráfego flua conforme os protocolos de roteamento estabelecidos pela Força-Tarefa de Engenharia da Internet (IETF, na sigla em inglês). O IETF funciona como se fosse seu órgão técnico global. É como as cidades que se interligam numa malha viária federada, sob um regime de leis de trânsito.

Porém, existem redes e redes. A rede de uma grande operadora de telefonia, por exemplo, funciona mais como uma via expressa, espécie de galho grosso de árvore por onde as transmissões de muitos precisam passar ao irem de uma folha a outra.

Os donos dessas grandes redes e os governos com aspirações hegemônicas já perceberam que, se agirem de forma uníssona nos grandes entroncamentos, podem interferir durante o roteamento para forçar o desenho conceitual da malha em uma estrutura hierárquica do tipo árvore, que tem tronco único. E isto, hoje, não só em termos econômicos ou políticos, mas em tempos de guerra cibernética, significa muito poder. De controle, de manipulação, de bisbilhotagem.

Que resultados podem nascer da NetMundial?

A conferência acontece como consequência de um fato político que decorreu das denúncias de Edward Snowden. As denúncias revelaram uma realidade que no imaginário popular antes parecia apenas um possibilidade ou tendência: ou seja, um plano ofensivo de guerra cibernética posto em marcha para implantar um regime dominante de vigilantismo global.

Para os Estados que buscam defender sua soberania, e para os grupos organizados da sociedade civil que entendem o valor da privacidade e liberdade de expressão, e defendem os correspondentes direitos para a autonomia – e, no extremo, a sobrevivência – individual nesse contexto de ciberguerra, a única arma possível para resistir ao plano hegemônico é a descentralização.

Os resultados possíveis da NetMundial irão na direção de novos acordos de descentralização em planejamento e operações da Internet: mais democracia no Icann, mais autonomia para os redistribuidores e mais organização entre entidades civis para demandar serem ouvidas em decisões sobre operações na Internet. Mas isso é mais fácil de dizer no papel do que fazer acontecer no ciberespaço. Ainda mais quando se tem que remar contra a maré.

A internacionalização do Icann pode reduzir a hegemonia dos Estados Unidos sobre a internet?

Como os Estados Unidos concordaram em participar, podem estar interessados no que acreditam deva ser o resultado da iniciativa, inclusive influenciando nessa direção, como participante. Podem buscar um efeito psicológico, de terem a quem culpar se aquela tendência que podemos chamar de “balcanização” da internet seguir seu curso, como também podem buscar um efeito político, de parecerem estar civilizadamente cedendo algum controle sobre distribuição e resolução de endereços e nomes, na medida em que acreditem poder fazê-lo sem comprometer sua atual capacidade ofensiva cibernética. Não considero outras possibilidades, pois não acredito que os Estados Unidos possam no momento ser coagidos ou cooptados a ceder controle na rede por pressão diplomática ou de opinião pública.

É possível haver uma governança multissetorial e multilateral da internet, como quer o governo brasileiro?

Veremos. A julgar pela experiência brasileira, de composição do nosso Comitê Gestor da Internet (CGI), que na Conferência da ONU sobre Sociedade da Informação, em Túnis, em 2005, desfilou como modelo, e hoje parece dominada pelos interesses das grandes empresas de telecomunicações, talvez seja possível, mas só de fachada.

Alguma multilateralidade parece já estar ocorrendo na prática, mas não no sentido de uma governança no singular, já que atropelam as iniciativas negociadas e consentidas entre setores conflitantes: aquilo que nos referimos por “balcanização” da internet, quando governos de países decidem usar armas e táticas da ciberguerra para controle psicológico ou da comunicação digital interna.

Que proposta o senhor defende para reduzir o controle de governos sobre a internet?

Infelizmente, não acredito em qualquer proposta efetiva neste sentido enquanto a postura do cidadão médio com respeito à privacidade e à cidadania continuar a mesma. E continua a mesma. Na medida em que segue aceitando passivamente a virtualização das práticas que o tornam um ser social, ele se expõe à troca desses valores fundamentais pela conveniência de novos hábitos, os quais podem escravizá-lo a certas complexidades que ele não pode dominar. E como em política não existe vácuo, oportunistas virão explorar as oportunidades.

A NetMundial poderá frear a espionagem em massa na internet?

A espionagem é o menor dos problemas. O mais grave é o vigilantismo, que se camufla de espionagem. A espionagem é a bisbilhotice sobre alvos militares ou diplomáticos com propósitos específicos, que sempre existiu e vai continuar existindo.

Espionagem em massa é eufemismo para governo paranoico, enquanto esse vigilantismo global é a bisbilhotagem por atacado no planeta com o propósito de aumentar o poder de quem o controla, ao arrepio da ordem democrática ou republicana, inclusive para intimidar, chantagear e fazer escambo com instrumentos semelhantes de outras entidades que também o praticam.

Não acredito que as decisões tomadas coletivamente nessa conferência possam frear diretamente nem a espionagem, nem o vigilantismo global informatizados. Mas, dependendo de quais decisões, podem tornar as respectivas operações mais sensíveis, aumentando no imaginário coletivo a percepção de como essa sanha pelo poder pode ser destrutiva para as formas de organização social que impõem limites à tirania e à ganância, no estágio civilizatório em que nos encontramos.

Como a NetMundial poderá trazer mais segurança e privacidade às comunicações?

No front normativo, acredito que a conferência pode contribuir para diluir temporariamente o poder concentrado em certos atores cujos interesses hegemônicos estão consolidados em alianças estratégicas globais. Mas apenas momentaneamente, pois novas regras de governança funcionarão apenas como diques para esse poder monetizável concentrado, que vai então buscar e encontrar novos caminhos para operar tais alianças, rumo à nova ordem mundial imposta por um regime político tirânico supranacional.

O complexo industrial militar de que nos alertava o ex-presidente norte-americano Dwight Eisenhower agora engloba também um complexo industrial cibernético. As alianças neles forjadas, envolvendo Estados e grandes corporações, são cruciais para a forma de guerra contemporânea e não creio que possam ser detidas pela lógica civilizatória promovida pela ideologia contra-hegemônica ou multilateralista que anima esta conferência, embora nesta a tentativa seja um dever moral.

Independentemente dos resultados desta conferência, creio que caminhamos para um cenário de crescente erosão da privacidade e insegurança nas comunicações. Porém, no front psicológico, acredito que a conferência pode contribuir com algo positivo, que é instruir os indivíduos e entidades mais antenados com o nosso tempo, sobre a geografia política da ciberguerra.


Por Tadeu Breda, da RBA 

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